sábado, 30 de dezembro de 2017

A JUSTIÇA RESPIRA MAL




A JUSTIÇA RESPIRA MAL

Vários comportamentos, mediaticamente destacados, das principais instâncias do poder judicial português têm tido ecos superficiais contraditórios e têm suscitado impressões distintas na sociedade portuguesa. Uns entusiasmam-se, outros indignam-se. Cada vez mais encolhem os ombros, com desilusão ou simples indiferença. Os entusiastas, os indignados e os indiferentes arrumam-se desigualmente ao sabor do que em cada caso está directamente em causa.

Mas, de acordo com os estudos opinião publicados, em geral, o prestígio dos juízes e dos magistrados do ministério público tem descido até aos últimos lugares na hierarquia da consideração, que por eles têm os portugueses. Os tribunais, corporizados essencialmente pelos juízes, são um órgão de soberania. Todos os outros órgãos de soberania radicam a sua legitimidade no facto de serem escolhidos directa ou indirectamente pelo voto popular. O Presidente da República e os deputados à Assembleia da República são eleitos directamente; o Governo depende principalmente da vontade e decisão dos deputados. Os juízes, embora exerçam os seus poderes “em nome do povo”, nos termos da Constituição, não são eleitos por ninguém.

Os magistrados do ministério público dispõem de uma autonomia que os não exclui da tutela genérica do Governo, regulada pela lei nos termos da Constituição.

Uns e outros, corporativamente, têm pugnado por uma autonomia ainda maior, neste último caso, e por uma independência ainda mais radical, no caso dos juízes. Não só em Portugal, mas também em Portugal, sob a capa de uma luta contra a corrupção (plenamente justificada em si própria) têm vindo a deslizar crescentemente para uma intromissão ilegítima nas esferas de competência política do poder executivo e até, mais raramente, do poder legislativo.

No entanto, se no caso português a opinião pública, exprimindo em larga medida a vontade popular, aprecia, como é público, tão negativamente os juízes, como podem continuar eles a ser dispensados, incondicionalmente, de se submeterem a um crivo eletivo directo ou indirecto, que certifique que o povo, em nome de quem decidem, os mandata realmente para julgarem? E, se o mesmo desprestígio atinge os magistrados do ministério público, o que está na ordem do dia é a necessidade dos poderes democráticos, que resultam do nosso voto, tomarem medidas urgentes para uma reabilitação profunda da qualidade da sua actuação, que lhes permita recuperar o prestígio perdido.

Todos sabemos (e quem tenha frequentado uma Faculdade de Direito, como é o meu caso, sabe-o sem margem para dúvidas, por experiência) que como estudantes  os então futuros juízes e magistrados não eram, por natureza, mais honestos, mais inteligentes, mais sabedores, mais equilibrados, mais trabalhadores do que  os outros. E não há Faculdade de Direito que, em si, seja capaz de ungir de uma espécie de santidade democrática todos os que por lá passarem. Por isso, não há nenhuma justificação objetiva para que seja quem for possa ser encarregado de uma função tão relevante como a judicial, sem ser submetido, como os titulares de outros poderes públicos o são, a um controle democrático claro e efetivo.

Tem vido a manifestar-se, com crescente frequência, uma enérgica vociferação, talvez nalguns casos sem má fé, contra os partidos políticos, contra aquilo a que chamam classe política (pondo com essa noção, num mesmo saco, lobos e cordeiros, raposas e galinhas, como se os cordeiros pudessem comer os lobos e as galinhas, as raposas). Os furiosos acendem-se , em regra, por causa de  atos ou omissões cometidos por um ou por outro partido em concreto, por uma ou por outra pessoa em concreto, mas a partir de uma primeira justa indignação quanto a cada caso generalizam, abrangendo tudo. E ao abranger-se gente séria na vociferação, está afinal a praticar-se uma injustiça e a estão a branquear-se os verdadeiros prevaricadores.

Embora não seja essa a única causa desta atmosfera insalubre que se respira em Portugal, para se poder melhorá-la não se pode ignorar a crise vivida pelas magistraturas judiciais, bem ilustrada, aliás, pela dramática quebra de prestígio público que enfrentam.

E como é óbvio, em virtude da situação a que se chegou, pelo menos num primeiro tempo, não é lógico que esteja em causa o aumento de autonomias ou de independências, mas sim uma intensificação equilibrada do controle democrático e das garantias de compatibilidade funcional e política dessas entidades judiciais com as escolhas democraticamente feitas pelos portugueses.


Mas se a estratégia for a de fingir que se muda muito à superfície para se garantir que em profundidade tudo fica na mesma, apenas estaremos a estugar o passo rumo ao abismo. E o abismo é, neste caso, uma maior degradação das magistraturas judiciais, rumo a uma séria perda de qualidade da democracia em Portugal.

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