quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O charme discreto da caridade


 Há um vago sabor cinzento na piedosa solidariedade que se ostenta nesta quadra festiva. É uma amargura mansa que paira discretamente sobre a exuberância das alegrias, feitas de luzinhas, de sorrisos e de uma rasgada retórica de uma generosidade forte. E pode muito bem surpreender-se um pequeno grão de hipocrisia e untuosidade refugiado num discreto recanto dos grandes gestos, das grandes festas e dos repetidos presépios, mais centrados na sua alegada autoimportância do que naquele que deviam querer homenagear.

Muitos dos que vampirizam os explorados e excluídos declaram-se, nesta quadra, como irmãos das suas vítimas. Talvez julguem assim iludir os infernos que causam na terra com a ilusão do céu que almejam para a sua própria eternidade. Uma eternidade calafetada e amena que os eleve a uma condição agradável como aquela de que disfrutam na terra.

Os pobres, os excluídos, são agora personagens humilhados de jantares festivos que as televisões devoram numa sofreguidão torpe. Matam a fome com o protagonismo público da sua própria humilhação, para que fique clara aos olhos dos senhores espectadores a generosidade das esposas dos maridos importantes e suas excelsas filhas, sobrinhas e amantes.

Dirão: antes isso do que estoirarem-no todo nas caraíbas do luxo ou em iates de sonho em redor das ilhas gregas. Concordo. Mas certamente me desculparão por preferir uma sociedade que estivesse organizada de uma outra maneira, de modo a que, para um punhado de barrigas flácidas e de pernas elegantes possa sugar a energia do sol  e o sabor epostoflante do champanhe francês numa praia recatada de um qualquer  algarve ou numa ilha brasileira plena de tropicalismo, uns milhões de cidadãos esquecidos  tenham que engolir a sua própria fome, misturando-a com uma pequena coleção de jantares de natal com risco de indigestão.

Claro que do mal, o menos. Por mim, prefiro a suave embriaguez das caridades, necessariamente pias e salvadoras de infernos, do que as bebedeiras homéricas em mansões de luxúria. Aliás, uma luxúria irredutivelmente pecaminosa que pode muito bem afastar  os seus descuidados cultores do almejado paraíso.

Mas certamente compreenderão que, impenitentemente, como socialista, republicano e laico, não ache bem que um punhado  de felizardos, por nascimento ou engenho ladino, compre um repouso de sesta para a sua vida e dos seus, com a simples generosidade de uma bacalhoada regada com um carrascão imbebível e com o envolvimento numa qualquer iniciativa jonética, mesmo que  lucidamente determinada a manter os viciosos pobres bem longe de qualquer  boa bifalhada , ainda que rara.

Tenho mesmo uma impressão vivaz de que os generosos pais do nosso capitalismo e os seus virtuosos pajens e capatazes não ganham  legitimidade para pugnarem pela conservação de um tipo de sociedade em que os pobres  ficam  arquivados na sua má  sorte ( ou são até vítimas da fatalidade de estarem cada vez mais acompanhados), só porque promovem uma festa de caridade pública com arroz doce e aletria à sobremesa, ou mandam uma legião de dondocas das melhores famílias descer aos santuários de consumo das classes médias para minorarem as desgraças que os seus chefes de família impessoalmente criaram pela mão amiga e oculta do dinheiro.

Atrevo-me mesmo a dizer que não é natalício que seja quem for possa colher tranquilamente os frutos da grande fábrica de pobreza que é o sistema que  nos rege, limitando-se a procurar compensar esse egoísmo predador da vida de muitos, sentando-os de quando em quando  à mesa da sua caridade.

Prefiro a caminhada difícil rumo a uma sociedade justa pelos caminhos de uma solidariedade democrática que procura tornar-se supérflua porque é emancipatória, do que uma condenação eterna a uma sociedade de muitos pobres e poucos ricos, em que estes se desculpem a si próprios, procurando compensar e temperar  com a sua caridade a injustiça estrutural de que beneficiam, cuja causa essencial são os seus próprios privilégios, é a sua própria proeminência.

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